Uma das primeiras alusões à importância do letramento visual no pensamento ocidental nos é dado por Platão. Na Alegoria da Caverna, o filósofo grego nos fala de um indivíduo que, depois de viver no interior de uma caverna sendo exposto apenas a sombras projetadas numa parede, vê-se incapaz de enxergar o mundo exterior quando conduzido em direção à luz. Pode-se depreender dessa alegoria que se trata de um processo gradual de adaptação desse indivíduo a uma nova realidade visual, possibilitando-lhe decifrar paulatinamente os significados das diferentes imagens às quais se vê exposto.

É claro que a Alegoria da Caverna tem leituras indo muito além dessa metáfora visual, no entanto ela nos serve para reafirmar o papel da educação como ferramenta fundamental para a aquisição de um vocabulário que nos permita compreender a complexa sintaxe visual, ou seja, como as imagens se articulam entre elas para criar outros significados. Trata-se de conhecimentos que, por sua vez, facilitam uma melhor decodificação do mundo concreto e simbólico o qual nos rodeia.

E por que deveríamos fomentar um letramento visual, em uma sociedade na qual cada vez mais se nota um déficit no letramento de textos escritos?

Primeiro, porque vivemos em um mundo onde as mensagens se caracterizam pelo imediatismo e simplicidade e, nele, a linguagem visual ocupa um espaço cada vez maior. Por essa razão, não podemos nos enganar pela aparente simplicidade dessas imagens. Através delas, uma miríade de mensagens, ideias e alusões a outros textos e contextos pode ser transmitida, tanto de maneira direta, como subliminar.

Um exemplo, a obra Redenção de Cam, do pintor espanhol Modesto Brocos, foi produzida em 1895, portanto, após a Abolição no Brasil. Na época, o país era influenciado por teorias científico-filosóficas como o Determinismo e o Positivismo, encaminhando a ideia de embranquecimento da população, pois consideravam o negro como um atraso e parte do passado. Assim, estimulava-se a chegada de imigrantes europeus a fim de mudar o perfil do povo brasileiro.

Além desse aspecto, é importante mencionar a intertextualidade ao identificarmos elementos sacros, presentes em outras duas obras usadas aqui: A Sagrada Família com Sant’Anna, do pintor espanhol do século XVII José de Ribera, e Madonna di Ognissanti, do pintor renascentista Giotto di Bondone. A disposição das pessoas no primeiro exemplo é lembrada no quadro de Brocos, ao passo que, na obra de Giotto, vemos a figura de Maria ao centro, com seu manto, o menino Jesus ao colo e todo o aspecto gestual, do mesmo modo apresentado na obra do pintor espanhol.

A Redenção de Cam remete à ideia de uma “família sagrada”. A “salvação” está no embranquecimento do povo, do menino iluminado no centro do quadro. Cam, personagem bíblico, foi amaldiçoado por Noé por este ter tido sua nudez exposta aos demais filhos. Como punição, Noé deseja que os filhos de Cam sejam “servos dos servos”, o que justificaria para a cristandade europeia a escravização de negros mais tarde. No quadro, observamos ainda a avó, negra, agradecendo aos céus à esquerda, enquanto o pai, orgulhoso, em uma pose aristocrática, observa seu rebento, ao colo de sua “madonna”. É uma família abençoada.

É crucial, portanto, estar dotado de instrumentos que permitam não somente decifrar códigos, mas também indagar sobre suas possibilidades polissêmicas, ampliando, assim novas visões de mundo e de comunicação. No Enem, é muito comum os estudantes se preocuparem em usar a Filosofia, Sociologia nas redações sem perceberem que é possível usar obras de arte como repertório sociocultural. Por que não? O quadro de Brocos pode ser usado em temas como racismo estrutural, patriarcado, legado e outros temas, tornando o texto original e mais autoral.

Carlos Henrique é formado em Letras (Português-Inglês) pela UFRJ, com mestrado em Estudos Culturais e Literários Britânicos pela Universidad Autónoma de Madrid e doutorando na mesma instituição. Trabalhou como professor na Universidad Antonio de Nebrija. Apresentou trabalhos em congressos e seminários em países como Brasil, Espanha, Portugal, Reino Unido, Holanda e Alemanha.

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